Greve de docentes nas Universidades Federais

Imagem: Franco Garcia
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARCELO SEVAYBRICKER MOREIRA*

A atual greve fortalece ou enfraquece o campo que luta pela consolidação de um sistema público, gratuito e de qualidade no ensino superior no Brasil?

Depois de seis anos sem qualquer reajuste salarial e sem qualquer greve (a última ocorreu em 2016), o governo federal – por meio da Medida Provisória 1170/2023 – concedeu aumento salarial para todo o funcionalismo público de 9% e reajustou o Auxílio-Alimentação de 458 para 658 reais. Além disso, retomou às mesas de negociação com os docentes federais, aumentou o número de bolsas e reajustou os seus valores para o mestrado e o doutorado (40%), o pós-doutorado (25%) – o que impacta positiva e decisivamente nas condições de trabalho dos docentes – além de ter expandido o número de bolsas e de seus valores para os estudantes (bolsas de Iniciação Científica, por exemplo, chegaram a um reajuste de 200%).

É inquestionável, por essas e outras razões, a notável inflexão da relação entre o governo Lula e as instituições federais de ensino em comparação com os últimos dois governos – Michel Temer e Jair Bolsonaro, quando houve um projeto deliberado de ataque, sucateamento e, inclusive, de privatização (alguém se lembra do “Future-se”) das instituições de ensino superior.

Ora, poder-se-ia alegar: é insuficiente. Claro que é! Mas são problemas que se acumulam há anos! Seis anos sem reajuste salarial e cinco anos de diminuição crescente das receitas das instituições federais de ensino (desde 2019), para uma estrutura de ensino – lembremos – que cresceu muitíssimo, tornando-se muito mais democrática e plural (não é demais lembrar, a partir do primeiro governo Lula).

Ora, o que alguns sindicatos de docentes têm decidido recentemente? Paralisar as atividades. Alegam, com razão, que não há previsão de reajuste salarial para a categoria em 2024 (ainda que exista a previsão orçamentária de reajuste de 4,5% nos dois anos seguintes e de aumento dos benefícios de saúde, creche e alimentação, já para 2024). Acrescenta-se a esse motivo a indignação do reajuste maior concedido pelo atual governo a outras categorias do funcionalismo público – em especial, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal (que, como sabemos, havia cerrado fileiras com o bolsonarismo).

Injustiça, sim, mas, como já ensinava Maquiavel, a política não é, necessariamente, o reino das ações justas e corretas, mas das ações que produzem uma consequência desejável – talvez, nesse caso, disputar com a extrema direita, a adesão dessas corporações tradicionalmente fortes no país. E novamente, não é de hoje que existem disparidades grandes no funcionalismo público. Militares, Judiciário, Polícia Federal, dentre outros setores, sempre tiveram salários e benefícios injustificáveis do ponto de vista da razão, mas compreensíveis dada a história nacional.

Como demonstrou Wanderley Guilherme dos Santos, no modelo de cidadania regulada, o Estado brasileiro sempre utilizou-se da regulamentação do mercado de trabalho a fim de garantir a submissão das corporações profissionais ao establishment. Portanto, ainda que a indignação seja justa, não é este governo, ou mesmo a greve docente que irá produzir uma modificação nesse padrão histórico.

É preciso, então, ser realista e compreender bem quais são os efeitos imediatos de uma greve docente. Em primeiro lugar, a suspensão das aulas e o prejuízo aos estudantes. E, lembremos, isso não significa nem propriamente o fim do trabalho docente. Todos nós teremos que continuar pesquisando, publicando artigos, orientando, formulando pareceres para revistas e órgãos de pesquisa etc. E, além disso, teremos que repor as aulas perdidas posteriormente.

Não basta voltar a trabalhar, como ocorre com muitos outros trabalhadores, pois uma consequência particular de uma greve de professores é a de ter que reorganizar o calendário letivo de modo a repor a carga horária não lecionada, perdendo o período das férias regulares e intensificando o trabalho (como ocorreu recentemente por conta da pandemia do novo coronavírus). Além desses dois efeitos, as universidades tendem a ficar esvaziadas, como sabemos por experiências anteriores. Com a suspensão das aulas, os estudantes, em geral, não irão mais para os campi e alguns deles voltarão para suas cidades de origem.

Então, para quê a greve? Que tipo de politização, debate e ação política será possível nesse cenário? At last but not least, se é verdade, como se argumentou aqui, que este governo, (a despeito das suas inúmeras limitações) é inequivocamente melhor para as universidades, para a ciência e para a classe docente, será a greve uma medida sensata neste momento? Ainda que seja um direito constitucionalmente assegurado e uma forma de ação coletiva legítima, é preciso que ela seja adotada quando o cenário for conveniente ao ator que a realiza.

Ora, a correlação de forças da política nacional é sabidamente muito favorável ainda à ultradireita, com sua ideologia anti-ciência e contrária às universidades públicas – vistas pelo bolsonarismo como um reduto de esquerdistas e vagabundos. Nenhuma greve dos docentes federais nos quatro anos do governo Bolsonaro e uma greve contra o governo Lula (que, diga-se de passagem, ainda se dispõe a negociar com a categoria) sinalizaria, então, o que para a opinião pública? Como essa greve será apropriada pelo campo contrário à consolidação de um sistema público, gratuito e de qualidade de ensino superior no Brasil em um ano eleitoral?

Por outro lado, é lógico que o governo Lula precisa ter igualmente uma compreensão mais adequada do cenário. Que os ditames de austeridade que se impõe hoje sobre toda democracia não o cegue totalmente. Não estou nem me referindo a declarações indevidas do presidente da República sobre a “grevizinha” dos professores ou à postura dos burocratas enviados às mesas de negociação com os sindicatos e que estabelecem a interrupção do movimento grevista como condição para a conversa. O erro político mais grave do atual governo parece estar associado à incompreensão de que seu sucesso como projeto político-eleitoral pressupõe necessariamente ir muito além da agenda neoliberal. E que a estratégia adotada nos governos anteriores de Lula (assentada em um pacto conservador e uma reforma gradual, como argumentou André Singer) não pode ser replicada, pois o contexto atual não é o mesmo de outrora, dentre outros fatores porque o país conta agora com uma ampla franja de eleitores radicalizados e mobilizados à direita. Que é preciso, portanto, construir políticas sólidas de bem-estar social, inclusive na educação, para ampliar sua base de apoio e para garantir que os eleitores saiam em sua defesa quando o governo for atacado. Que o segundo governo Dilma sirva de exemplo ao presidente da República e aos seus ministros é o mínimo que se deve esperar.

*Marcelo Sevaybricker Moreira é professor do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Autor do livro O pensamento político de Wanderley Guilherme dos Santos (Appris). [https://amzn.to/3ToA2H0]


A Terra é Redonda existe graças
aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Jorge Branco Sandra Bitencourt Leonardo Boff André Singer João Carlos Salles Carlos Tautz Bernardo Ricupero Everaldo de Oliveira Andrade Manuel Domingos Neto Ricardo Abramovay Flávio R. Kothe Dênis de Moraes Jean Marc Von Der Weid Denilson Cordeiro Heraldo Campos Eliziário Andrade Priscila Figueiredo Gilberto Lopes Samuel Kilsztajn Julian Rodrigues Kátia Gerab Baggio Eugênio Trivinho João Paulo Ayub Fonseca Otaviano Helene Leonardo Sacramento Alysson Leandro Mascaro Ricardo Fabbrini Fernão Pessoa Ramos Eduardo Borges Afrânio Catani Ladislau Dowbor Gerson Almeida Sergio Amadeu da Silveira Luiz Eduardo Soares Yuri Martins-Fontes Antonino Infranca Luiz Renato Martins Slavoj Žižek Luiz Marques Michael Roberts Armando Boito Manchetômetro Boaventura de Sousa Santos Francisco Pereira de Farias Marilena Chauí Ricardo Musse Annateresa Fabris João Lanari Bo Marcos Silva Paulo Nogueira Batista Jr Gabriel Cohn Anselm Jappe Henry Burnett José Luís Fiori Osvaldo Coggiola Celso Favaretto Marilia Pacheco Fiorillo Lucas Fiaschetti Estevez Valerio Arcary Anderson Alves Esteves Michael Löwy Luiz Bernardo Pericás Benicio Viero Schmidt Alexandre de Oliveira Torres Carrasco José Machado Moita Neto Lincoln Secco Maria Rita Kehl Henri Acselrad Tarso Genro André Márcio Neves Soares Jean Pierre Chauvin Atilio A. Boron Elias Jabbour Ronald León Núñez Paulo Capel Narvai Antonio Martins Luis Felipe Miguel Berenice Bento Dennis Oliveira Leonardo Avritzer Andrés del Río Juarez Guimarães Thomas Piketty Airton Paschoa Paulo Sérgio Pinheiro Bento Prado Jr. Michel Goulart da Silva Paulo Fernandes Silveira Vladimir Safatle Francisco Fernandes Ladeira Bruno Machado João Carlos Loebens Francisco de Oliveira Barros Júnior Bruno Fabricio Alcebino da Silva Chico Alencar Luiz Roberto Alves Paulo Martins Fernando Nogueira da Costa Luiz Werneck Vianna Gilberto Maringoni Claudio Katz Ricardo Antunes Chico Whitaker Alexandre de Freitas Barbosa Tadeu Valadares Daniel Brazil Walnice Nogueira Galvão Ronald Rocha Daniel Afonso da Silva Marcos Aurélio da Silva Matheus Silveira de Souza Remy José Fontana Marcus Ianoni Leda Maria Paulani Carla Teixeira João Feres Júnior Liszt Vieira José Dirceu Marjorie C. Marona Flávio Aguiar Lorenzo Vitral Fábio Konder Comparato Mariarosaria Fabris Vinício Carrilho Martinez Tales Ab'Sáber Andrew Korybko Érico Andrade Celso Frederico José Micaelson Lacerda Morais Rafael R. Ioris Caio Bugiato Eleutério F. S. Prado Ronaldo Tadeu de Souza João Adolfo Hansen Eleonora Albano Alexandre Aragão de Albuquerque Mário Maestri Luciano Nascimento Luiz Carlos Bresser-Pereira Rodrigo de Faria Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcelo Guimarães Lima Antônio Sales Rios Neto Eugênio Bucci Milton Pinheiro Marcelo Módolo Alexandre de Lima Castro Tranjan Igor Felippe Santos José Costa Júnior José Raimundo Trindade Ari Marcelo Solon Vanderlei Tenório Daniel Costa João Sette Whitaker Ferreira Luís Fernando Vitagliano Renato Dagnino Rubens Pinto Lyra Salem Nasser José Geraldo Couto Jorge Luiz Souto Maior

NOVAS PUBLICAÇÕES